Através da janela, escondido
atrás da cortina ele a observava, contemplava seu objeto de fascínio e desejo
como fazia todos os dias desde que se mudou para aquele lugar. Sua vizinha que
habita no apartamento da frente e que por ironia do destino possui a
localização do quarto estrategicamente em frente ao seu, proporcionando visões
cotidianas, às vezes tediosas e em sua maioria sexuais.
Marcos a contemplava sem remorso,
ela era sua Afrodite, sua Diana e todas as personificações possíveis de deusas,
e em sua fértil fantasia ela lhe pertencia, ele a possuía a todo o momento e
permitia a ela refestela-se com o outro, pois aquilo era seu prazer. Ele escrevia
todas as cenas que via e que imaginava da sua diva sem nome, haviam páginas e
páginas arquivadas com as histórias frutos de seus pensamentos, seus sonhos e
imaginação, sua musa inspiradora era para ele uma mulher extraordinária e
somente sua visão já o deixava totalmente exasperado pelo tormento de não poder
tocá-la.
Ele mal se alimentava pensando
naquela mulher intrigante, e quando o filme em sua janela se iniciava era o
paraíso, ele observava as curvas de seu corpo e seus movimentos rítmicos, subia
aos céus com a visão de seus seios que pareciam olhar para ele, sabendo de seus
segredos, de sua depravação. Escondia-se mais para não ser visto e sentia-se
cada vez mais febril de fome pela visão. Corria a seus textos e digitava
insanamente cenas que surgiam em sua mente, o fato é que ele nunca havia falado
com aquela mulher, nem sabia seu nome, mas a apelidara de Madalena, como uma
cigana ela o enfeitiçara com sua beleza, transformou-se em sua fonte de
inspiração, ele vivia por espera-la e escrever os acontecimentos sórdidos e
banais que sua mente fantasiava eram o alimento para seu espírito.
Entregou-se ao vício do álcool
como um refúgio para as vagas horas de espera e neste desespero inconstante e
surreal devaneou junto ao inconsciente, futilidades cotidianas.
...
─ O estomago rosna,
grita insano, pedindo saciação, pedindo feijão.
─ E a linda mulata atende tão
prontamente, juntando a farinha, e saciando a sede com o sangue de Baco.
─ Oh! Sangue doce este, haja
fome! ─ Só não de sabe de que.
...
Diga-me como conseguistes
arrancar um pedaço de mim, sem derramar nenhuma gota de meu sangue.
Foi à forma mais cruel, foi
intenso e segue sendo a forma mais sublime de me matar.
Se posso viver só? A resposta
é não.
Alimento-me das lembranças dos
sonhos e do que não vivemos, mas que imagino com perfeição.
Sigo sentindo amor e espero
que sejas feliz.
Embriago-me no calor do vinho,
e sinto desejos intensos como deve ser uma paixão.
Espero por ti e sonho.
...
Permita-me sentir uma ultima
vez o teu gosto e contemplar, fotografando em minha mente cada milímetro de teu
rosto.
E possuir como se fosse à
primeira vez o teu corpo.
Perdoe essa minha alma escrava
do desejo por ti
Que procura intensamente em
outros corpos saciar a sede de sua saliva
Do cheiro de tua pele, do teu
sabor proibido.
Liberta-me dessa obsessão de
ter alguns instantes perto de você.
Liberte-se de mim, pois a
loucura possuidora de minha alma destruíra a todos.
Como faz em meu interior.
Porém, se por ventura, decidir
mudar seus planos.
Devorarei tua carne e beberei
teu sangue
E em sacrifício do meu amor
por ti.
Permita-me imortalizar-te em
mim.
(Fragmentos dos textos de
Marcos)
Os dias eram frios... Apesar do
sol brilhante, os dias eram frios.
Marcos levantou naquela manhã
como sempre fazia, sua vida seguia uma rotina deprimente, sentia-se como um
robô programado para fazer sempre o mesmo, isso o estava corroendo, ele queria
gritar, dizer aos quatro cantos do mundo que se sentia parte de algo maior, que
não queria ser mais uma pessoa sem emoção, sem vida e sem lembranças de
momentos felizes. Queria viver sua vida de amor, de poesia, de música, arte e
boêmia, ele queria acordar cedo, ir a praia, produzir seus textos e lá pelas
tantas tomar uma cerveja, olhando as sereias que eram sua fonte de inspiração.
Mas o destino traiçoeiro e
brincalhão conduziu um enredo diferente para aquele humilde rapaz, o pobre moço
acorda com um barulhento despertador toda manhã, e segue esta rotina de segunda
a sábado. Sonolento caminha para o banheiro onde se apronta ligeiro, logo
depois toma um café requentado e vai todo apressado a quitanda do seu Zé dos
centavos.
Marcos pensa que a sorte é uma
víbora que brinca com os destinos, fazendo dos sonhos pó e do pó sonhos. Ele
que sonhara ser um escritor conhecido, e agora para continuar existindo, não
pode se dedicar totalmente ao que lhe proporciona prazer.
E por capricho do destino
conseguiu que seu Zé dos centavos homem conhecido por sua avareza, lhe
empregasse na quitanda do bairro; “Fome não passaria!”.
Todo dia Marcos trabalhava meio
expediente na quitanda e quando dava sua hora de partir sorria e se despedia,
caminhando de volta para o pequeno apartamento que dividia com um amigo
recente, um homem chamado Luiz.
As lembranças da forma como se
conheceram sempre o faziam rir, uma noite qualquer, em um bar por ai, estava
Marcos observando o movimento da noite, pessoas rindo, dançando, bebendo,
fumando e eis que de repente surge Luiz, pede licença para sentar-se com
Marcos, diz que não suporta beber sozinho, faz um comentário sobre a noite,
começam a discutir temas banais e logo descobrem que compartilham coisas em
comum.
A primeira coisa: ambos
procuravam uma casa para alugar com urgência, Luiz disse a Marcos que havia
chegado à cidade há alguns dias, que conseguiu trabalho em uma livraria e que
estavam hospedados na casa de parentes distantes, uns primos de sua mãe.
A segunda coisa: Possuíam
recursos escassos, o custo de vida naquela cidade era alto, mas ali a sorte
sorria melhor para todos, era arriscar ou conformar-se em não tentar e coragem
não faltava aos dois.
A terceira coisa: Precisavam de
privacidade para colocar seus planos em prática, Marcos para produzir, e Luiz
pretendia estudar, se especializar. Era um termo cômodo no acordo.
A quarta: Amavam a noite e toda a
magia e sensações que somente um copo de cerveja, uma conversa agradável e uma
bela melodia ao fundo podem proporcionar.
O acordo de unir forças foi
abençoado e logo conseguiram aquele apartamento no segundo andar de um prédio
antigo, em uma rua predominante de moradias, onde havia também uma padaria e um
bordel que ficava na esquina.
─ Ah! O puteiro da Carlotinha.
Um antro de ninfas do prazer, os
antigos moradores da região contam que diversos casamentos tiveram seus alicerces
abalados depois que o bordel se instalou ali. Marcos visitou o lugar uma vez
junto com seu amigo Luiz, o lugar tinha uma luz bruxuleante, finos tecidos
estampados em tons vermelho e laranja se espalhava pelo ambiente e tornavam a
decoração do lugar excitante, nas paredes havia alguns quadros com posições do
kama sutra e uma reprodução de um quadro de Lautrec onde há uma mulher de
cabelos ruivos e de nádegas avantajadas agachadas. Era realmente um convite a
luxuria, ao pecado e ao prazer.
Carlotinha, como era conhecida a
dona do bordel, uma figura encantadora apesar de sua idade já avançada, que
Marcos nem ousava tentar estimar. Havia as moças que na casa moravam e que
foram apelidadas pelos frequentadores de “Filhas de Afrodite” por
proporcionarem prazeres mitológicos.
Ali era um ótimo lugar para
relaxar e aproveitar os prazeres da carne, isso para os homens que apreciam a
depravação e o prazer desvirtuado. Marcos não era casto, mas tinha alma de
poeta sonhador e idealizava viver um grande amor, evitava o quanto possível ter
relações que traiam esse princípio romântico de sua natureza, mas gostava de ir
ao puteiro da Carlotinha (como ele se referia ao lugar), para se inspirar, para
descrever poeticamente o pecado, a libido o desejo que se apoderava do homem em
sua forma mais devassa.
...
“Me Pergunto onde está a
inspiração
Busco-lhe
Venha a mim
Para que minha alma obscura
irradie a luz da paixão
Luz que um dia brilhou,
através das palavras do coração”
...
Sentado como um rei observo
Desbravadores a procura de um
tesouro
A fonte inesgotável de prazer
Com suas mãos escalam montes
curvilíneos
Picos perigosos para os
principiantes nas artes do prazer
Estes afogam-se nas salivas
lascivas e se perdem
O caminho é longo e abundante
ao oferecer a mais bela vista que um homem pode querer
E quando a longa caminhada
cobra seu preço
A sede vem queimando a
garganta de uma forma desesperadora
E ao encontrar a fonte da
ninfa adorada
Esbaldar-se-á no âmago de sua
adoração com lábios ávidos
Língua nervosa, frenética por
saciar-se
E ao ouvir o brado final
Recolhe enfim a ultima gota,
sua recompensa por sua expedição noturna.
(Fragmentos dos textos de
Marcos)
De volta ao reduto, Marcos
aguardava em seu lugar estrategicamente posicionado a aparição de sua madalena,
e lá pelas tantas ela surgia, com sua beleza etérea, longos cabelos negros como
a noite, rosto sublime, angelical.
Ela olhava pela janela em sua
direção, como se pudesse vê-lo escondido pelas frestas das persianas de sua
janela. Madalena tirava sua roupa com um sorriso misterioso nos lábios, um
olhar intenso e safado e logo mãos começaram a alisar seu corpo nu.
Aquelas mãos pertenciam ao outro,
o homem que sempre a possuía, seu marido.
Eram cenas intensas que rasgavam
o coração de marcos, estimulavam seu desejo e desesperava seu ciúme, misturas
de sentimentos controversos o possuíam de forma tão intensa, e escrevia as
imagens, o desejo, os sonhos em papéis aleatoriamente.
Sua rotina assim seguia
desequilibrada trabalhava, vadiava, observava e escrevia. Com o passar do
tempo as coisas foram se tornando vazias, como se algo o consumisse e deixasse
um buraco no seu interior, pois o que o saciava, hoje provoca mais fome, uma
vontade de mais, sem saber mais do que.
E desta forma preferia ficar
observando Madalena sempre que podia, todos os dias, obsessivamente, era o que
aliviava suas emoções, a ideia de tê-la em seus braços era avassaladora, um imã
que o levava a loucura, todos os dias, mais e mais.
Vislumbrava em sua memória o
corpo de Madalena, o seu rosto, suas curvas, imaginava o suor escorrendo pelos
seios enquanto ela deslizava suavemente em seus braços, sussurros ao pé do
ouvido, seu nome em uma voz feminina, doce, suave e arfante e acordava do sonho
como um adolescente na casa da puberdade.
Passaram-se dias e meses nesta
insanidade, até o fatídico dia, em que Marcos acordou totalmente perdido no
tempo, há tempos não via seu amigo Luiz, ambos seguiam seus caminhos, e o de
Marcos foi o da auto reclusão, sua necessidade de acompanhar Madalena a
distância. Naquela manhã porém Madalena não apareceu, e durante todo o dia foi
assim, Marcos pregado na Janela, aguardando uma visão de sua amada, e não havia
sinais dela no apartamento da frente.
O desespero tomou conta de marcos
que fez vigília durante toda a noite e na manhã do dia seguinte, já tomado por
uma loucura, saiu de seu apartamento decidido a descobrir onde estava Madalena,
desceu as escadas, passou pelo porteiro acenando a cabeça, atravessou a rua, e
encontrou-se diante do prédio de madalena.
Cumprimentado com um bom dia,
sorriu ao porteiro e perguntou se ele saberia informar se a moça que morava no
prédio do terceiro andar estava em casa.
O porteiro fez uma cara de
surpresa e logo respondeu que há um ano não havia ninguém morando no terceiro
andar, perguntou se Marcos não estava enganado quanto ao apartamento da moça em
questão.
Marcos convicto disso que tinha
certeza que era no do terceiro andar, que era uma moça de cabelos negros.
O porteiro então o levou até o
apartamento do terceiro andar, abriu as portas e disse:
─ Este apartamento está fechado,
a família do antigo dono colocou a venda com tudo dentro, mas quando as pessoas
sabem da desgraça que ocorreu aqui, desistem, ninguém quer comprar.
─A moça que o senhor veio
procurar é esta? ─ Perguntou apontando para um porta retrato.
─ Marcos viu a imagem de Madalena
sem entender, ele tinha certeza que era ela.
─ O que aconteceu? ─ Perguntou ao
porteiro.
─ Em uma noite, o marido ciumento
a matou e se matou logo em seguida, foi uma tragédia.
Marcos não acreditava nas
palavras do porteiro, tentava encontrar uma resposta para aquela loucura, foi
andando pelo apartamento, entrou no quarto e olhou a janela agora fechada,
caminhou até ela e abriu, tendo a vista para seu quarto, e quando olhou
fixamente a viu, como se estivesse esperando por ele, no lugar onde sempre a
imaginou, em seu quarto.
Saiu desatinado do apartamento,
agradecendo ao porteiro enquanto ia desesperado ao encontro de madalena,
jogou-se a correr pela rua e foi atingido por um carro, sendo lançado longe na
calçada, Marcos desfalecendo olhou para sua Janela e viu longos cabelos negros
esvoaçados, seus escritos lançados ao vento, todo seu trabalho caiam, alguns
sobre seu sangue e ouviu uma gargalhada de Madalena e antes de fechar os olhos
e morrer ouviu a voz com que tanto sonhara sussurrar.